Por Gustavo Miranda
Atualmente, o grau de qualidade de um pesquisador é medido pela quantidade de artigos científicos publicados e se pelo menos alguns deles foram feitos em revistas de alto fator de impacto. Quase que comprovadamente, quem possui muitas publicações é considerado um pesquisador de grande qualidade e renome no meio científico, enquanto que o contrário, não tem tanto impacto assim. Muitas vezes isso pode ser considerado verdade, uma vez que os vários órgãos de fomento à pesquisa fazem com que quase todos tenham dinheiro suficiente para conduzir seus trabalhos, e, com isso, produzir resultados. Uma pessoa pobre ou de classe média que sozinha nunca conseguiria conduzir uma vida de cientista por ter que trabalhar e sustentar uma família ou a si mesmo, com esse tipo de apoio financeiro é capaz de alcançar o mundo acadêmico, contando é claro com muito esforço e um pouco de sorte.
Numa época não muito distante da nossa, em meados do século XIX, a quantidade de publicações muitas vezes não condizia com a qualidade do pesquisador. O valor científico dos manuscritos é que revelava a qualidade do cientista. Prova incontestável disso foi Charles Darwin, que em sua vida, além de publicar o livro A origem das espécies, escreveu pouco mais do que sobre cracas, movimento das plantas e minhocas. Porém, pela revolução causada por sua teoria (a da seleção natural), Darwin passou a ser um dos ícones da Biologia, muito mais que Alfred Russel Wallace, o outro autor da mesma teoria que, entretanto, é o primo pobre da história.
Como o ano da teoria da evolução já passou, podemos trocar um pouco de assunto e adentrar outros campos da Biologia. Apesar de a área de estudo mudar, o apreço por cientistas com muitas publicações e possuidores de uma condição monetária elevada continua. Leon Croizat foi uma das vítimas dessa injustiça acadêmica. Nascido na Itália em 1894, filho de comerciantes, e apaixonado pelas ciências naturais, Croizat não pôde seguir o natural caminho de um estudante para a universidade. Em 1914 foi convocado para servir o exército italiano na primeira guerra mundial.
Passada a guerra de trincheiras, Croizat pôde finalmente entrar na universidade graças a condições especiais dadas a veteranos de guerra, graduando-se em direito na universidade de Turim. Em 1922, época em que se preparava para fazer seu PhD e finalmente estudar as ciências naturais, foi forçado a abandonar seu país por razões políticas devido ao fascismo introduzido na Itália.
Em 1923, Croizat se instala nos Estados Unidos e enfrenta a severa realidade de um imigrante. Durante consideráveis quinze anos, realiza trabalhos precários e passa por tempos difíceis até finalmente conseguir um trabalho temporário na Universidade de Harvard. Ele tinha a função de mapear o terreno de Arboreto Arnold, localizado na própria universidade, trabalho este que foi a porta de entrada de Croizat na carreira científica. Terminado o mapeamento ele conseguiu um emprego de assistente técnico na instituição. Nos horários livres, se deleitava em uma das maiores coleções de plantas do mundo e uma das mais magníficas bibliotecas do planeta. Aos quarenta e quatro anos, Leon Croizat finalmente iniciava seu tão sonhado estudo do mundo natural.
Croizat mergulhou profundamente no estudo da botânica, sozinho e sem orientação. Conhecia por autodidatismo todas as línguas importantes da época e decidiu entender todo o pensamento da botânica ocidental desde seu início no século XVII. Comprometeu-se ainda a entender os padrões de distribuição geográfica de todas as plantas do mundo. Dedicou-se a esse trabalho durante dez anos (1938 a 1947) e anotava tudo o que lia, pensava ou percebia em diversos cadernos, que no final de sua pesquisa se espalhou por nada menos que quatrocentos volumes.
Com esse estudo, Croizat pôde analisar a distribuição de praticamente toda diversidade vegetal conhecida na época e comparar seus resultados com a distribuição de outros grupos, como minhocas, moluscos e aves. Logo ele percebeu que haviam padrões de distribuição repetidos entre as biotas. Na época, a idéia dominante era a do dispersionismo que propunha que os organismos tinham um centro de origem e desse ponto se dispersavam para outros lugares do planeta, sendo sua distribuição atual o resultado dessa dispersão. Porém, sua percepção foi além do senso comum.
Croizat se questionava como espécies de organismos com biologia e ecologia tão diferentes, seguiam padrões de dispersão tão semelhantes. Sua conclusão se baseou numa mudança revolucionária de perspectiva. Ele concluiu que não eram as biotas que se moviam juntas entre os continentes, mas os continentes que se moviam carregando as biotas consigo. Sua idéia deu grande suporte a teoria de Wegener da deriva continental, que na época estava em profundo descrédito. Indiretamente, Croizat conseguiu apenas com dados biológicos, provar uma teoria da geologia.
Prestes a completar dez anos em Harvard e conseguir estabilidade em seu cargo no emprego, Croizat foi demitido. Com isso, esvaiu-se sua chance de publicar a idéia pela universidade. Novamente encontrava-se sem emprego, sem diploma de biólogo, sem publicações, mas desta vez, com uma idéia revolucionária. Suas qualificações não o reputavam o bastante para conseguir bom emprego. Por sorte, conseguiu cargo como professor na universidade de Caracas, na Venezuela. Sua primeira posição acadêmica conseguida aos cinquenta e três anos.
Em Caracas, Croizat pôde finalmente colocar seus pensamentos em ordem. Ele postulava que as biotas atuais derivam de biotas ancestrais que se dividiram em resposta a mudanças geográficas, produzindo espécies vicariantes. A palavra vicariante tem sua raiz no italiano e significa representante. Espécies vicariantes já eram reconhecidas desde os tempos de Darwin e Wallace, mas foi Croizat quem fez uma análise das biotas como um todo. Sua tão revolucionária visão foi então denominada por ele mesmo de pan-biogeografia (biogeografia do todo). Ele não considerava sua idéia uma teoria, mas sim um método para se estudar padrões biogeográficos.
Dedicou-se então dez anos escrevendo volumosos livros, alinhando sequências de exemplos de variados grupos de plantas e animais, produzindo, finalmente, seu primeiro manuscrito, Panbiogeography, com cerca de mil páginas em três volumes. Porém, como pudemos observar até agora, a sorte não costumava andar muito ao lado de Croizat. Após pronto seu laborioso trabalho, nenhuma editora se interessou em publicar seus livros.
Contudo, devido a sua grande teimosia, Croizat pegou suas sacrificadas economias e publicou o livro de seu próprio bolso no ano de 1958, aos sessenta e quatro anos. No ano de 1964, publicou outro livro também com seu próprio dinheiro chamado Space, time, form: the biological synthesis, referente às suas idéias.
Após esses eventos de sofrido sucesso, Croizat finalmente começou a ser reconhecido na biogeografia mundial e a publicar artigos em revistas, apesar de serem de baixo prestígio. Provavelmente devido a sua adiantada idade, Croizat era avesso a novas idéias. Como exemplo, a teoria da tectônica de placas que surgiu na década de 60, afirmou definitivamente que seu método estava correto, porém, foi terminantemente refutada por ele. O surgimento da sistemática filogenética de Willi Hennig, que somado às suas idéias foi capaz de reconstituir a distribuição atual dos organismos, como fizeram Gareth Nelson, Norman Platnick e Donn Rosen, fazendo surgir a Biogeografia de Vicariância, também não foi aceita por um Croizat já com oitenta anos. Por causa dessas aversões à novidades, é considerado um dos cientista mais controversos da biologia do século XX.
Com isso, a figura de Leon Croizat foi gradualmente sendo ofuscada pelas novas e modernas teorias propostas por Nelson, Platnick, e Rosen o que fez com que a ciência e a história pouco a pouco o esquecesse. Porém, como bem disse Fernando Fernandez em seu livro O Poema Imperfeito, “essa figura serve como um maravilhoso exemplo para nos inspirar neste mundo atual no qual o mérito tantas vezes parece tão pouco valorizado, e os sonhos, tão distantes”.
Referências Bibliográficas:
FERNANDEZ, F., 2004. O poema imperfeito: Crônicas de Biologia, Conservação da Natureza e seus Heróis. Ed. UFPR, 257 pp.
COLACINO, C., 1997. Léon Croizat’s Biogeography and Macroevolution, or … “Out of Nothing, Nothing Comes”. Philipp. Scient. 34 (1997):73-88. (aqui)
4 comentários:
Olá Gustavo!
Parabéns pelo texto. Eu tenho um blog cujo nome advém de uma das obras do Croizat "Forma, Tempo e Espaço", mas não há um texto tão elegante quanto o seu.
Gostaria de pedir permissão para divulgá-lo no meu blog. É possível?
Abraços,
Sarah
Texto muito, e infelizmente a ciência continua tendenciosamente elitista, e assim mentes brilhantes acabam perdidas em meio a falta de oportunidade e condições de se manter no meio acadêmico, é desistimulador ver o incentivo a determinadas pesquisas, mas sigamos.
Gustavo estou esperando o livro ainda heim...
Coitado dele. Mas é bom lembrar que esse tipo de situação não é exclusiva da Biologia não.
Parabéns pelo artigo muito bem exposto, ajudou (e muito) em um trabalho meu sobre gênios esquecidos. Obrigado!
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